Trabalho
Psicóloga. Doutora em Políticas Públicas e Formação Humana e Mestre em Saúde Coletiva pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Professora-pesquisadora do Laboratório de Trabalho e Educação Profissional em Saúde da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (Lateps/EPSJV/Fiocruz).
Historiadora. Doutora em Saúde Pública pela Escola nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz) e Pós-doutora em Sociologia do Trabalho pela UMINHO - Portugal. Professora-pesquisadora do Laboratório de Trabalho e Educação Profissional em Saúde (Lateps) e Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Educação Profissional em Saúde da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz).
Quem construiu Tebas, a cidade das sete portas? Nos livros estão nomes de reis; os reis carregaram pedras?
Esses são os primeiros versos do poema chamado “Perguntas de um trabalhador que lê”, escrito em 1935 pelo dramaturgo e poeta alemão Bertold Brecht. Tais perguntas nos fazem pensar sobre o seguinte dilema: se grande parte do que temos ao nosso redor é fruto do trabalho humano, qual a razão para quase nunca reconhecermos ou valorizarmos quem realizou o trabalho de construção de tudo isso? Por que as coisas produzidas são vistas como algo independente e mais valioso do que o trabalho envolvido na sua realização?
Os seres humanos se caracterizam pela capacidade de se relacionarem entre si, com a natureza e subjetivamente, transformando e diversificando suas condições de vida nos mais diferentes territórios e tempos históricos. Assim, o trabalho tem um sentido muito importante para a humanidade, chamado sentido ontológico, que diz respeito ao fato de o trabalho ser uma condição necessária à vida humana, pela qual homens e mulheres modificam a natureza e, ao fazê-lo, modificam a si própria(os). Nesse sentido, o trabalho que os seres humanos realizam, forma os próprios seres humanos, ou seja, o que os homens e as mulheres são ou se tornam é produto também do seu trabalho (Marx, 1983; Saviani, 2007). Se a necessidade é uma característica comum a todos os animais, a consciência da necessidade e a intencionalidade de satisfazê-la distingue o ser humano das outras espécies. A capacidade de imaginação é a primeira etapa de qualquer trabalho. Criar ou transformar qualquer coisa exige planejamento, seja este elaborado por nós mesmos, seja por outras pessoas. O trabalho é uma ação intencional, por meio da qual os homens e as mulheres agem sobre um objeto, projetando nele uma ideia, um projeto que vai se tornar realidade em um produto, fruto de sua ação transformadora (Engels, 2004). E, ainda, para produzir algo, precisamos de “meios”: conhecimentos prévios, matérias-primas, instrumentos, máquinas… nossos ou de outras pessoas.
Ao longo do tempo e nos diferentes territórios, as formas de trabalhar e as relações que organizam o trabalho são historicamente transformadas. Essas transformações se referem ao caráter histórico do trabalho. As sociedades e os processos históricos mais recentes, que deram origem ao nosso modo de vida atual, construíram-se a partir de formas diversificadas e cada vez mais complexas de divisão social do trabalho, envolvendo relações de classe que se configuram por outras mediações, como gênero e raça.
Nesta divisão, as etapas de criação, planejamento, execução e apropriação dos bens produzidos passaram ao controle de grupos restritos, por meio de longos e tumultuados processos de privatização de terras comuns e confisco dos meios de produção de grandes conjuntos de produtores (Thompson, 2004). A propriedade privada e a divisão social do trabalho tornam possível a alguns grupos explorarem o trabalho dos outros tantos, introduzindo uma contradição fundamental no seio da humanidade (Konder, 1991) e definindo duas classes com interesses antagônicos e inconciliáveis (Marx, 2004), os capitalistas – donos dos meios de produção – e os trabalhadores – possuidores da força de trabalho.
Nas sociedades urbano-industriais capitalistas, o trabalho assumiu a forma do trabalho assalariado, constituindo uma relação contratual por meio da qual as trabalhadoras e os trabalhadores vendem a sua força de trabalho aos detentores dos meios de produção, para receber uma quantia em dinheiro que lhes permita ter acesso à alimentação, vestuário, moradia e outros itens que compõem um conjunto de bens e serviços necessários à sua existência e à reprodução de sua capacidade de seguirem vivendo e trabalhando.
Para que a força de trabalho se transformasse em mercadoria, foi necessário dividir a produção em tarefas simples, de modo que o resultado do trabalho parcelar não tivesse valor de uso para o trabalhador. Ele terá valor de uso para quem adquirir o produto que é a soma dos trabalhos parcelares e terá valor de troca para os proprietários dos meios de produção. A divisão parcelar do trabalho tem relação também como o valor da força de trabalho. Este é calculado de acordo com os custos para sua formação/qualificação e com a complexidade da atividade prevista. Por isso, quanto mais parcelada e simplificada for a função da trabalhadora e do trabalhador, menos qualificação será necessária para o cumprimento de sua função – o que significa, para as trabalhadoras e os trabalhadores, desvalorização de sua força de trabalho (Marx, 1984). O parcelamento e a simplificação das atribuições de cada trabalhadora e trabalhador, além de rebaixar os salários, tornou possível à classe capitalista maior controle sobre o processo de trabalho.
Na relação de compra e venda da força de trabalho, ao capitalista interessa que trabalhadoras e trabalhadores trabalhem mais do que o tempo necessário para produzir um valor equivalente ao seu salário. Isto porque, ao ultrapassar este tempo em sua jornada de trabalho, a trabalhadora e o trabalhador passam a produzir um valor excedente que é apropriado pelo capitalista (mais-valia absoluta) (Marx, 2004). Com o maior controle sobre o processo de trabalho e a introdução de tecnologias (maquinário, por exemplo), tornou-se possível intensificar o ritmo de produção e ampliar a produtividade das trabalhadoras e dos trabalhadores num mesmo tempo de trabalho (jornada). Esse aumento de produtividade corresponde a um valor excedente proporcionalmente ainda maior, gerando a mais-valia relativa, igualmente apropriado pela classe capitalista.
A apropriação do valor excedente é considerada “legítima”, uma vez que, por ter vendido sua força de trabalho, tudo o que as trabalhadoras e os trabalhadores produzirem pertence ao capitalista. Assim, mesmo que uma parte do trabalho diário realizado pelas trabalhadoras e pelos trabalhadores fique sem remuneração, ou seja, a parte correspondente ao sobretrabalho que gera a mais-valia, as trabalhadoras e os trabalhadores não devem se aperceber disso. Segundo Marx, a intenção é produzir uma falsa aparência de que o trabalho não remunerado foi pago – e essa aparência é caraterística do trabalho assalariado em relação a outras formas históricas assumidas pelo trabalho (Marx, 2004).
O contrato de trabalho, dispositivo legal que passa a mediar a relação de venda e compra da força de trabalho, tem papel fundamental na ocultação da desigualdade intrínseca à essa relação entre trabalhadores e capitalistas. Socialmente reconhecido e juridicamente balizado pelos Estados capitalistas, produz a ideia de uma relação justa, celebrada entre duas partes supostamente livres e iguais. Essa aparência se desfaz quando confrontada pelas experiências de organização da classe trabalhadora, expressas na luta por melhores condições de trabalho e vida e pela transformação das relações sociais capitalistas.
No modo de produção capitalista, o objetivo do trabalho é submetido às necessidades da classe capitalista que, necessariamente, precisa obter lucro e apropriar-se do produto do trabalho alheio para acumular riqueza, e as necessidades das trabalhadoras e dos trabalhadores são limitadas aos bens e serviços necessários à manutenção de sua vida e de suas famílias e à reprodução da sua força de trabalho (Ramos, 2007). As experiências organizativas, insurgentes e revolucionárias da classe trabalhadora promovem o tensionamento desses limites e produzem transformações. Foi por meio da ação organizada da classe trabalhadora, por exemplo, que os chamados direitos sociais foram conquistados. Como o operário que lê, do poema de Bertold Brecht no início deste verbete, aprende a questionar o que parece “natural”. Este é um passo fundamental para a formação da consciência das trabalhadoras e dos trabalhadores e para o vislumbre, no horizonte, de uma sociedade transformada, mais justa e igualitária.
Nas três últimas décadas do século XX e nas primeiras do século XXI, a relação de trabalho tem sofrido grandes mudanças no sentido da desregulamentação das relações que caracterizam o trabalho assalariado, decorrentes do processo de reestruturação produtiva e da difusão da ideologia neoliberal nos planos político, econômico e social, promovendo a precarização que atinge as diversas dimensões da vida da classe trabalhadora. Nesse contexto, os problemas se multiplicam e a classe trabalhadora é desafiada a reinventar suas formas coletivas de organização, resistência e luta e seguir reunindo esforços no sentido da transformação dessa realidade injusta e desigual.
Na área da saúde, o trabalho também expressa as divisões social, de gênero e de raça que marcam nossa sociedade e tem sofrido os efeitos precarizantes do processo de reestruturação e desregulamentação do trabalho e da ampliação das frentes de privatização do setor. Esses assuntos são tratados no verbete Trabalho em Saúde.
Fordismo
Sindicalismo
Toyotismo
Trabalho em Saúde
ENGELS, Frederich. Sobre o papel do trabalho na transformação do macaco em homem. In: ANTUNES, Ricardo (org.) A dialética do Trabalho: escritos de Marx e Engels. São Paulo: Expressão Popular, 2004, p. 13-34.
KONDER, Leandro. O que é dialética. 25. ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 1991.
MARX, Karl. Processo de trabalho e processo de valorização. In: ______. O Capital: crítica da economia política. Volume 1, tomo 1. São Paulo: Editora Abril, 1983, p. 149-163.
MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política. Volume 1, tomo 2. São Paulo: Abril Cultural, 1984.
MARX, Karl. Salário, preço e lucro. In: ANTUNES, Ricardo (org.) A dialética do Trabalho: escritos de Marx e Engels. São Paulo: Expressão Popular, 2004, p. 71-123.
RAMOS, Marise Nogueira. Conceitos básicos sobre o trabalho. In: FONSECA, Angélica Ferreira; STAUFFER, Anakeila de Barros (org.). O processo histórico do trabalho em saúde. Rio de Janeiro: EPSJV/Fiocruz, 2007. p. 27-56. (Coleção Educação Profissional e Docência em Saúde: a formação e o trabalho do agente comunitário de saúde, 5).
SAVIANI, Dermeval. Trabalho e Educação: fundamentos ontológicos e históricos. Revista Brasileira de Educação. v. 12, n. 34, jan./abr. 2007, p. 152-180.
THOMPSON, Edward Palmer. Formação da classe operária inglesa. v. 1. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2004.
Como citar:
MOROSINI, Márcia Valéria; Braga, Ialê F. Trabalho [Verbete]. In: Glossário da pesquisa Desafios do Trabalho na Atenção Primária à Saúde na Perspectiva das(os) Trabalhadoras(es). Rio de Janeiro: EPSJV/Fiocruz, 2023. Disponível em: ___________. Acesso em: ___________.