Desafios do Trabalho na Atenção Primária à Saúde
na Perspectiva das(os) Trabalhadoras(es)

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Precarização do trabalho

Márcia Valéria Morosini

Psicóloga. Mestrado em Saúde Coletiva e Doutora em Políticas Públicas e Formação Humana pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro.  Professora-pesquisadora do Laboratório de Trabalho e Educação Profissional em Saúde da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (Lateps/EPSJV/Fiocruz).

Quando se pensa em precarização do trabalho, as primeiras ideias que vêm à cabeça são a crescente retirada de direitos dos trabalhadores e o aumento das formas de inserção no trabalho, diferentes daquelas que caracterizam o que conhecemos como trabalho assalariado, também chamado de emprego típico. Mas este processo inclui também um conjunto de mudanças implementadas no modo de gerir o trabalho, independentes do tipo de inserção e do setor de atuação do trabalhador. Nesse sentido, um trabalhador com contrato estável e com os direitos respeitados também pode experimentar efeitos da precarização. Outro aspecto importante é que a precarização é um processo que, a partir do trabalho, afeta a vida dos trabalhadores, produzindo efeitos objetivos e subjetivos, resultantes da deterioração das condições e das relações de e no trabalho. Como isso se dá? 

Em termos de perda de direitos, para concluir que um trabalho é precário, em geral, toma-se como parâmetro a legislação que foi construída para a proteção do trabalhador, conquistada por meio da organização e luta dos trabalhadores. São leis que compõem a regulamentação do trabalho assalariado nas sociedades capitalistas e definem as condições que precisam ser garantidas para que um trabalho seja considerado legal, formal. Por meio dessa regulamentação, os trabalhadores conquistaram, por exemplo, o direito a uma jornada de trabalho semanal definida, ao descanso remunerado (férias), a realizar seu trabalho em ambiente seguro, a se afastar do trabalho para se recuperar de um acidente ou uma doença, sem perda do salário, assim como o direito à licença maternidade, a um ambiente seguro para as gestantes etc.

Esses direitos não são os mesmos em todos os lugares e, às vezes, nem mesmo para todos os trabalhadores. Há países nos quais os trabalhadores tiveram conquistas maiores e melhores do que em outros, configurando uma regulamentação trabalhista mais ou menos abrangente e favorável aos trabalhadores. Há também diferenças desses direitos entre trabalhadores num mesmo país. Essas características, em linhas gerais, dependem da correlação de forças entre aqueles que vendem a própria força de trabalho para viver e aqueles que detêm os meios de produção e compram essa força de trabalho, realizando o que chamamos de exploração. Trata-se, portanto, de uma situação em constante tensão, na qual cada polo dessa relação ganha quando o outro perde, ou perde quando o outro ganha. Essa correlação é comumente chamada de relação capital-trabalho.

No Brasil, a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), publicada em 1º de maio de 1943, representa até hoje a principal referência em termos de proteção do trabalhador e garantias associadas ao trabalho. Apesar de seus limites, a CLT foi fundamental, pelo menos, para: 1) definir como devem ser as relações entre empregadores (patrões) e empregados (trabalhadores), estabelecendo seus limites legais, contribuindo, por exemplo, para distinguir o trabalho formal do informal; 2) dar base para os trabalhadores e suas organizações moverem processos legais contra os empregadores que descumprem essa legislação; e 3) fornecer um alicerce para demandas do movimento dos trabalhadores pela defesa ou ampliação dos direitos ali definidos.

Em meados dos anos 1970, o capitalismo mundial passou por uma crise de caráter estrutural. Buscando contê-la e recompor seus ganhos, nas décadas seguintes, o capital passou a promover amplamente transformações econômicas, sociais, políticas e culturais inspiradas nas ideias neoliberais. No mundo do trabalho, foram implementadas medidas que transformaram principalmente o modo de organizar a produção e as relações de trabalho, caracterizando a chamada reestruturação produtiva.

Flexibilidade foi o termo mais difundido para caracterizar essas mudanças. Mas, para flexibilizar relações de trabalho reguladas por leis, é preciso desconstruir ou redefinir o conjunto de legislações que normatizam esse trabalho. Assim, em todo o mundo, as leis que regulamentam as relações de trabalho tornaram-se alvo de mudanças que visavam flexibilizá-las ou enfraquecê-las. Trocando em miúdos, as mudanças na legislação trabalhista visam permitir maior flexibilidade para demitir, contratar, alocar e remanejar a força de trabalho. Como flexibilidade é um termo geralmente associado a algo bom, pode ficar difícil compreender os efeitos negativos que ela pode trazer para os trabalhadores. Essa dificuldade também se dá pelo fato de as mudanças na legislação protetiva do trabalho serem geralmente anunciadas como algo necessário, como um meio para gerar mais emprego, agilizando as formas de contratação e demissão e reduzindo os custos da folha de pagamento para o empregador.

Entretanto, se substituirmos a palavra flexibilidade por facilidade, na frase do parágrafo anterior, talvez fique mais claro o que acontece de fato: maior facilidade para demitir, contratar, alocar e remanejar a força de trabalho. Como se alcança essa facilidade? Retirando direitos dos trabalhadores para que estes se tornem menos protegidos e com menos recursos a seu favor diante de quem compra o seu trabalho. Uma relação desigual torna-se ainda mais desigual, pois os trabalhadores perdem instrumentos para se defender frente aos avanços do capital sobre o seu trabalho. Os trabalhadores vão progressivamente se tornando mais vulneráveis e fragilizados.

No Brasil, destacamos três normas aprovadas recentemente que têm efeitos para todos os trabalhadores: a Lei 13.429 de 2017, que permite a terceirização nas chamadas atividades fim; a Lei 13.467 de 2017, que altera a CLT, com retirada de direitos; e a Emenda Constitucional 103 de 2019, que altera as regras da previdência social, tornando mais difícil a aposentadoria. As duas primeiras compõem a “reforma trabalhista” e a terceira, a “reforma da previdência”.

A flexibilização das relações e dos contratos de trabalho ampliaram as desigualdades entre os trabalhadores e promoveram um panorama diversificado de condições e relações de trabalho, remuneração, jornada, “benefícios” etc. Um importante mecanismo de flexibilização do trabalho tem sido a terceirização que vem se espalhando pelas mais diferentes atividades, no setor privado e público, promovendo contratações intermediadas por empresas que se especializam em subcontratar, com salários e benefícios diminuídos em relação aos empregados diretos das empresas, estes cada vez em menor número. Há também os meios que disfarçam a contratação dos trabalhadores, transformando-os em Pessoa Jurídica (PJ) ou Microempreendedor Individual (MEI), por exemplo.

Quanto às mudanças no modo de gerir o trabalho, vemos que, primeiro no setor privado e depois no setor público, a lógica de organização e administração do trabalho passa a se orientar pela produtividade e pelo alcance de metas quantificáveis, com métodos de avaliação centrados na mensuração de resultados, incentivando a competitividade entre os trabalhadores, buscando a maximização dos resultados, a racionalização de recursos e a redução de custos. Além disso, a gestão do trabalho passa a valorizar a subjetividade dos trabalhadores, buscando colocá-la a serviço dos interesses das empresas, utilizando métodos e técnicas que mobilizem, cada vez mais, os sentimentos e desejos dos trabalhadores.

Essas mudanças vieram acompanhadas de um grande desenvolvimento tecnológico, em especial de tecnologias da informação. Difundiram-se dispositivos portáteis, como os celulares e os notebooks, e a internet, com redes espalhadas pelo mundo afora, dentro das empresas e nas casas das pessoas. Essas ferramentas permitiram um maior controle sobre o trabalho e substituíram funções desempenhadas por trabalhadores, aumentando o desemprego. Além disso, ampliaram as possibilidades de realização do trabalho em casa, nas horas que deveriam ser de descanso e de convívio dos trabalhadores com familiares e amigos. O tempo de trabalho avança sobre o tempo de não-trabalho, diminuindo ou prejudicando o tempo do trabalhador para o lazer, a cultura, o esporte, as relações sociais, familiares etc.

Essas transformações acontecem num ritmo cada vez mais veloz. Difundem-se novas e reciclam-se antigas formas de exploração do trabalho que têm promovido um processo de precarização amplo e generalizado que, atualmente, está acelerando a deterioração das condições de trabalho. Temos presenciado a diminuição dos empregos formais, o crescimento do desemprego estrutural, a intensificação do trabalho, a extensão da jornada, perdas salariais, entre outros prejuízos para os trabalhadores. Mais recentemente, o trabalho sob demanda, o contrato zero hora e as empresas de plataformização do trabalho, como a Uber, aprofundam o processo de precarização do trabalho, agora também sob efeito dos algoritmos.

As entidades tradicionais de organização e representação dos trabalhadores foram bastante afetadas. Com tantos tipos diferentes de contratação, relações e condições variadas de trabalho, acompanhadas da perda de aspectos legais que fortaleciam a atuação das organizações sindicais, tornou-se mais difícil para os trabalhadores se organizarem para representarem coletivamente seus interesses, desenvolverem ações de solidariedade e promoverem resistência.

Todas essas mudanças têm efeitos objetivos e subjetivos que se combinam e se manifestam de modos variados. A perda de direitos, a dificuldade em se aposentar, o aumento do desemprego e a alta rotatividade estão relacionados, por exemplo, à generalização da sensação de insegurança e do sofrimento pela dificuldade em garantir o presente e prever o futuro. A intensificação do trabalho, o acirramento da competitividade e a perda dos laços de solidariedade contribuem para o aumento do adoecimento mental (além de físico) dos trabalhadores, produzindo aumento do estresse, episódios de depressão, burnout etc. A ocupação cada vez maior do tempo da vida do trabalhador pelo trabalho acentua esses problemas e diminui as possibilidades de extravasamento das tensões geradas pelo trabalho, além de provocar mais isolamento e vulnerabilidade.

Na saúde pública e, em especial, na Atenção Básica à Saúde, a precarização do trabalho tem se dado por meio de mecanismos semelhantes. A terceirização do trabalho, com a intermediação da contratação por meio das organizações sociais, por exemplo, tem afetado muitos trabalhadores. As demissões são facilitadas e os que permanecem trabalhando experimentam mais insegurança e instabilidade. A gestão do trabalho orientada pela produtividade, pelo alcance de metas definidas ‘pelo alto’, sem discussão e participação dos trabalhadores, impõe mais importância a objetivos ligados ao controle e à avaliação do trabalho do que aos objetivos do cuidado e da atenção à saúde que passam a ser secundarizados.

As mudanças na política, com destaque para a Política Nacional de Atenção Básica (Portaria nº 2.436/2017), a nova política de financiamento da AB, chamada Previne Brasil (Portaria nº 2979/2019) e a Carteira de Serviços da Atenção Primária à Saúde, atingem o financiamento da AB, a composição das equipes, o modo de organizar os serviços (o que se faz, como se faz, quem faz, quantos fazem) com efeitos para o modelo de atenção. A Estratégia Saúde da Família, baseada nos princípios da Atenção Primária à Saúde integral, territorializada, de base comunitária e participativa tem sido enfraquecida. É cada vez sido mais difícil para os trabalhadores realizarem o trabalho que percebem necessário para que o direito à saúde se concretize de fato e com qualidade. Essas condições levam à experiência de perda do sentido do trabalho e produzem adoecimento e sofrimento físico e mental para os trabalhadores.

No contexto da pandemia de COVID-19, as situações que fragilizam os trabalhadores da saúde ficaram mais evidentes. Por um lado, registraram-se situações de extensão da jornada de trabalho, de elevada exposição ao risco de adoecimento e morte, de escassez ou dificuldade de acesso a equipamentos de proteção individual, como as máscaras cirúrgicas, PFF2 ou N95, de contratações irregulares para o trabalho emergencial, de suspensão de férias e folgas e outros descumprimentos de direitos. Ficou nítido também o sofrimento físico e mental gerado pelo trabalho nessas condições precárias, agravadas pela dramática situação dos pacientes e suas famílias, num cenário de desproteção generalizada, seja pela falta de conhecimento e recursos adequados para o enfrentamento da pandemia, seja pela insuficiência ou demora na implementação de políticas efetivas para a minimização dos efeitos sanitários e sociais envolvidos.

Por outro lado, esse mesmo contexto de pandemia mostrou a importância do SUS e seus trabalhadores e a necessidade de fortalecê-los para que o direito à saúde se realize de fato para todos no Brasil.

 

Verbetes Relacionados: 

Direitos Trabalhistas

Exploração

Formas de organização e resistência dos trabalhadores

Intensificação do trabalho

Neoliberalismo

Reestruturação produtiva

Terceirização

Territorialização

Trabalho

Trabalho informal

Trabalho plataformizado

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Como citar:

MOROSINI, Márcia Valéria. Precarização do trabalho [Verbete]. In: Glossário da pesquisa Desafios do Trabalho na Atenção Primária à Saúde na Perspectiva dos Trabalhadores. Rio de Janeiro: EPSJV/Fiocruz, 2023. Disponível em: ___________. Acesso em: ___________.