Desafios do Trabalho na Atenção Primária à Saúde
na Perspectiva das(os) Trabalhadoras(es)

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Reestruturação produtiva

Filippina Chinelli

Historiadora. Doutora em Educação e Mestre em Antropologia Social pela Universidade Federal Fluminense. Professora-pesquisadora do Laboratório de Trabalho e Educação Profissional em Saúde da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio da Fiocruz (Lateps/EPSJV/Fiocruz).Historiadora. Doutora em Educação e Mestre em Antropologia Social pela Universidade Federal Fluminense. Professora-pesquisadora do Laboratório de Trabalho e Educação Profissional em Saúde da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio da Fiocruz (Lateps/EPSJV/Fiocruz).

A reestruturação produtiva é um processo de transformação que afetou todas as dimensões da vida humana, a partir de uma ampla modificação das condições e relações que organizam o trabalho no modo de produção capitalista. Teve início nos Estados Unidos e nos países da Europa Ocidental, num contexto de crise econômica e social em meados dos anos 1970, e se difundiu rapidamente em escala mundial. Entre suas consequências para os trabalhadores, destacam-se o aumento do desemprego, a ampliação da precarização do trabalho, o enfraquecimento das formas de organização dos trabalhadores e a vulnerabilização social. 

Desde o fim da Segunda Guerra Mundial, em 1945, o mundo vem se transformando cada vez mais rapidamente. Nossa maneira de estar no mundo mudou. As relações entre as pessoas e com a natureza, com o trabalho, com o tempo também se transformaram. Essas mudanças se acentuaram a partir de meados dos anos 1970, quando o capitalismo mundial entrou em crise, pondo fim a um período de três décadas de desenvolvimento econômico e social nos Estados Unidos – EUA – e nos países da Europa Ocidental. O individualismo cresceu de forma assustadora, as desigualdades, a fome e a violência assolam o mundo. As ideias neoliberais se espalharam, trazendo consequências adversas para todas as sociedades humanas, principalmente para aquelas dos países menos desenvolvidos, como o Brasil. Por que tudo isso aconteceu? Claro que não há apenas uma resposta. Para compreendermos como isso tudo vem se dando, é preciso levar em conta um conjunto de questões associadas a esse processo.

Após a guerra as sociedades europeias estavam devastadas: milhões de mortos, cidades e economias destruídas, desemprego e escassez de alimentos, forte crise econômica e social. Os Estados Unidos, ao contrário, foram os grandes favorecidos pelo conflito. Vivia-se à época um período de forte crescimento do país, ao mesmo tempo em que se temia o avanço internacional do comunismo.

Os países europeus precisavam ser reconstruídos. Para tanto, os EUA implentaram o Programa de Recuperação Europeia, mais conhecido como Plano Marshall, em 1947, projeto de empréstimos e doações financeiras por parte de capitalistas norte-americanos. Esses financiamentos e a ascensão de partidos sociais-democratas possibilitaram a esses países se reerguerem, reconstruírem suas indústrias e outros setores da economia, seguindo-se um longo período de crescimento, sobretudo na França, Alemanha e Inglaterra, sob a liderança dos Estados Unidos que haviam se tornado a principal potência econômica do mundo (Harvey, 1989).

A economia norte-americana tinha como modelo a indústria automobilística e se caracterizava pela produção em massa e consumo de artigos padronizados; melhores salários; empresas fortemente hierarquizadas entre operários e gerência; controle dos tempos; movimentos dos trabalhadores empregados na produção; e fragmentação das tarefas. Esse modelo de organização da produção que ficou conhecido como taylorismo-fordismo, possibilitou que os Estados Unidos assumissem a liderança econômica e política global (Pinto, 2013; Harvey, 1989).

A organização fordista do trabalho demandava grande número de trabalhadores que se reuniram em sindicatos, o que permitiu a formação de uma identidade coletiva e a luta em torno de reivindicações comuns (Srnicek, 2019). Isso possibilitou, no caso europeu, sobretudo a partir dos anos 1950, e consideradas as condições culturais, econômicas e políticas específicas dos diferentes países, a construção das bases do que viria a ser denominado Estado de Bem-Estar Social. Durante os trinta anos que se seguiram ao fim da guerra, conhecidos como “gloriosos”, as lutas dos trabalhadores europeus, mediadas pelo Estado, obtiveram políticas de combate à pobreza, aumentos salariais, ampliação dos serviços públicos como saúde, educação, habitação,  previdência social etc., enfim, melhores condições de vida e trabalho. Entretanto, essas conquistas implicaram acordos entre os sindicatos e os empresários, o que conteve, ao menos até meados dos anos 1970, demandas mais profundas dos trabalhadores (Srnicek, 2019).

Cabe destacar que, já nos anos 1960, o fordismo-taylorimo apresentava evidências de esgotamento, inaugurando um período de forte resistência dos trabalhadores e de amplos setores das sociedades europeias, como os estudantes. Verificava-se alto índice de ausência dos trabalhadores nas empresas, provocado pela desmotivação com o trabalho extremamente rotinizado, característico da produção em massa, cujos produtos apresentavam grande quantidade de defeitos. Além disso, os produtos europeus sofriam a concorrência dos produtos norte-americanos, de preço mais baixo. A produtividade do trabalho começava a diminuir, não só nesses países, mas também nos Estados Unidos, afetando o resto do mundo.

A partir de meados dos anos 1970, esse modelo de organização da produção e das relações sociais começou a desmoronar, quebrando o compromisso que havia sustentado a relação entre o capital e o trabalho nas décadas que se seguiram à Segunda Guerra. A capacidade produtiva se ampliara com aumento da produção e ampliação da oferta, o que diminuiu sensivelmente o preço dos produtos manufaturados. Ou seja, o capitalismo passou a enfrentar uma crise de superprodução, o que diminuiu as taxas de lucro dos empresários, contribuindo decisivamente para o declínio do fordismo-taylorismo (Harvey, 1989).

A essa crise se somaram os chamados “choques” do petróleo dos anos 1973 e 1979. Com a descoberta de que o petróleo não é um recurso energético renovável, os principais produtores decidiram aumentar o preço do barril, sob a justificativa de que os países árabes e a Venezuela precisavam ampliar seus lucros para promover o seu desenvolvimento. Isso provocou o aumento da inflação, a redução abrupta das taxas de crescimento econômico, a elevação do desemprego, a desregulamentação dos mercados internacionais, o que configurou o cenário de crise do fordismo e do Estado de Bem-Estar Social (Fiori, 1997).

O capitalismo precisava ser reorganizado. Para ampliar seus negócios, incrementar a produtividade e aumentar o lucro, o empresariado procurou se espelhar em seus competidores bem-sucedidos, sobretudo o Japão, cuja economia baseava-se no modelo toyotista (Pinto, 2013; Harvey, 1989). O processo produtivo foi modificado no sentido de evitar desperdícios, torná-lo mais flexível e enxuto, ajustando-o à demanda dos consumidores – just in time, diminuindo com isso os estoques. Para tanto, foi necessário que os empresários investissem pesadamente no desenvolvimento de novas tecnologias, sobretudo de informação e comunicação – as TICs –, que permitiram a reorganização da produção e a extraordinária ampliação da produtividade das empresas.

Embora se tenha prometido um mundo com menos trabalho, com mais lazer e mais bem-estar, o que se vem verificando é que o trabalho não só aumentou, como, para muitos trabalhadores, tornou-se mais penoso, mais explorado, com direitos diminuídos ou inexistentes e, muitas vezes, destituído de sentido: grande parte da população mundial trabalha basicamente para sobreviver. Prometeram-se mundos e fundos para todos em escala planetária, mas essas promessas se realizaram para poucos. Para as grandes empresas internacionais, sem dúvida. Elas foram as grandes beneficiárias, sobretudo as do setor financeiro. Para os trabalhadores, mesmo para aqueles dos países centrais, as consequências foram, de modo geral, bastante adversas. O desemprego e a precarização do trabalho se acentuaram, os direitos trabalhistas são reduzidos, o trabalho informal vem atingindo altíssimos patamares, sobretudo nos países periféricos, continuando intocadas desigualdades gritantes, como no Brasil.

Esse processo teve e vem tendo como sustentação política e ideológica a expansão gradual das ideias neoliberais, cuja ofensiva global ocorreu ao fim do século XX. Resumindo muito, essas ideias defendem o chamado ‘Estado Mínimo’, a não interferência do Estado na economia, a privatização das empresas estatais e o fim das políticas sociais de caráter universal.

No Brasil, a área da saúde sofreu fortes impactos da reestruturação produtiva, podendo ser observada a adoção da perspectiva gerencialista na gestão de trabalho, que se manifesta, por exemplo, no crescente avanço do trabalho terceirizado nos serviços de saúde, e através do estabelecimento de metas na prestação dos serviços. Manifesta-se, ainda, na incorporação cada vez mais acentuada de tecnologias ao cuidado; na implantação de novos modelos de produção da assistência; na gestão da força de trabalho, com a adoção do trabalho terceirizado em larga escala, tanto no setor público como no privado; no desfinanciamento da saúde pública; na intensificação e na precarização do trabalho e da vida de trabalhadores e trabalhadoras, notadamente das mulheres que constituem a maioria nos serviços.

Cabe observar que, no caso da Atenção Primária à Saúde, tem-se verificado um forte interesse do setor privado, especificamente de planos de saúde, em participar da oferta de serviços, criando novos e diversificados formatos de negócios. Esse avanço pode significar o fortalecimento da perspectiva biomédica visto que, nessa lógica, a organização e gestão do trabalho prevê ações e resultados passíveis de quantificação. Por outro lado, a lógica da determinação social do processo saúde-doença, que tem, na universalidade, equidade e integralidade, pilares fundamentais, aponta para a maior complexidade da concepção de atenção à saúde e, por consequência, de trabalho em saúde no Sistema Único de Saúde - SUS.

Verbetes Relacionados: 

Atenção Primária à Saúde 

Fordismo

Gerencialismo

Intensificação do trabalho

Precarização do trabalho

Sindicalismo

Sistema Único de Saúde

Taylorismo

Toyotismo

Referências Bibliográficas: 

ANTUNES, Ricardo. A nova morfologia do trabalho e as formas diferenciadas de reestruturação produtiva no Brasil nos 1990. Revista da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, v.27, 214.

HARVEY, David. Condição pós-moderna. São Paulo: Edições Loyola, 1989.

FIORI, José Luís. Estado do Bem-Estar Social: padrões e crises. PHYSIS: Rev. Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, 7(2): 129-147, 1997. Disponível em: <https://www.scielo.br/j/physis/a/qJZJQm4N36gyJhjkpfvwdhK/?format=pdf&lang=pt>. Acesso em 18/04/2023.

PINTO, Geraldo Augusto. Organização do trabalho no século XXI. São Paulo: Expressão Popular, 2013.

STERNICEK, Nick. Capitalismo de plataformas. Buenos Aires, Caja Negra Editora, 2019.

 

Como citar: CHINELLI; Filippina. Reestruturação Produtiva [Verbete]. In: Glossário da pesquisa Desafios do Trabalho na Atenção Primária à Saúde na Perspectiva dos Trabalhadores. Rio de Janeiro: EPSJV/Fiocruz, 2023. Disponível em: _____________. Acesso em: ______________.